Heráclito – a guerra (Πόλεμος) é mãe e rainha de todas as coisas

A única atitude sensata que poderíamos assumir, dentro do rio, seria a de nos deixarmos levar pelas águas. Mas estamos demasiado cônscios da nossa personalidade, demasiado convencidos da nossa individualidade, do nosso eu, e temos medo de nos dissolvermos nas águas, de deixarmos de ser nós mesmos. Então, cheios de angústia, nos agarramos às raízes do barranco, nos penduramos aos ramos que se debruçam sobre o rio, nos abraçamos uns aos outros ou nos troncos que rolam ao sabor das águas, ou ainda, mais desesperados, nos apegamos às pedras que repontam, agudas e ásperas, do leito lodoso. E assim nos defendemos. Mas é uma defesa desesperada, pois as águas são mais fortes do que nós e não cessam de passar. Sofremos e nos angustiamos. Entretanto, se compreendêssemos que as águas não são inimigas, que são, pelo contrário, o elemento em que vivemos e que o seu impulso é benéfico, tudo se resolveria facilmente. Sem relutância, nos entregaríamos à correnteza. E ela, suave e leve como um córrego a levar uma flor, nos conduziria através das paisagens conhecidas e desconhecidas, rumo ao nosso verdadeiro destino.

Essa imagem nos lembra aquela passagem evangélica, tão obscura para os que não compreendem o sentido da vida: “aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas aquele que a perder por amor de mim, salvá-la-á”.

Disse o padre Alta, no seu admirável livro O Cristianismo do Cristo e o dos seus vigários, que Jesus está para nós na posição de um grande nadador, ensinando-nos a nadar. A imagem condiz com a que expusemos acima. E é por isso que ele nos ensinava a nos entregarmos às águas, sem temor de perder, com isso, a nossa vida.

Quanto mais um homem se apega às suas idéias pessoais, aos seus caprichos, aos seus sistemas, mais se distancia dos outros, mais se afasta da vida. Quem não conhece esses temperamentos confinados, essas criaturas ranzinzas, cheias de “coisinhas”, que estão sempre de prevenção contra tudo e contra todos? Pois não são outra coisa senão indivíduos agarrados fortemente às raízes do barranco. Eles se defendem da vida e dos homens, querem viver a seu modo, fechados nos seus costumes. Quem quiser tirá-los para fora da cova mental e psíquica em que eles se meteram, por vontade própria, será considerado inimigo. No entanto, se os levarmos a um médico psiquiatra, este os considerará enfermos, que de fato o são, e lhes receitará os meios necessários à libertação.

                             (O Sentido da Vida, Herculano Pires)

1- Segundo a célebre afirmação de Heráclito, nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. O que isso significa?

Esta conclusão do filósofo está baseada na observação de que tudo flui em a natureza. Para Heráclito, o que subjaz e é a causa dos fenômenos é o movimento, donde tudo nele é e a totalidade é movimento.

Assim, aquilo que é, é movimento, de modo que a permanência é mera aparência, fixação dos sentidos, decorrendo disso, que o rio, como todas as coisas, está fundado na impermanência, ou seja, num vir-a-ser constante.

2- A luta dos opostos é necessária para a transformação da natureza. Exemplifique.

O movimento inerente a manifestação da natureza segue uma ordem, que Heráclito denomina a luta dos opostos.

O vir-a-ser é a relação entre os opostos ou só se dá nessa relação, por exemplo, a criança se torna em adulto, o adulto em velho, e um só pode ser em relação ao outro, de modo que os contrários se complementam na manifestação de todos os fenômenos: o frio só pode ser em relação ao quente, o dia em relação a noite, o pequeno em relação ao grande, e etc.

A ordem natural é a ordem dos opostos que não se contrapõem, mas se complementam. Dessa forma é que Heráclito denomina a guerra (pólemos – Πόλεμος) como rainha de todos as coisas, que também fundamenta a harmonia de toda a natureza, pois sem seu contrário algo não pode ser nem vir-a-ser. A harmonia do todo vem da guerra entre as partes, no sentido de que é no constante sobrepor-se dos opostos que a unidade do real se mantém.

Então, Heráclito caracteriza o movimento (kinesis) determinado por uma lei intrínseca, que consiste na relação entre os opostos, e não num mero movimento de destruição e aparição das coisas de modo caótico e aleatório.

3- Em que consiste o conceito de multiplicidade para Heráclito.

Em Heráclito a multiplicidade é também unidade, porque nada é sem o seu oposto.

Conceber as coisas de modo separado não é conhecimento, é ilusão, é fixação por uma parte do uno que se apresenta no múltiplo.

O Ser é múltiplo, porque está constituído de oposições internas ou é unidade que contém o múltiplo. Em Heráclito essas duas ideias são essenciais para pensar o Ser.

4- Em que medida a teoria de Heráclito oferece um argumento lógico para a teoria da reencarnação?

Uma vez que o movimento é ordenado por uma lei que consiste na relação dos opostos, e a partir do qual tudo é em a natureza, podemos identificar no aforismo heraclitiano – “Dos mortais surgem os imortais e destes os mortais.” – uma espécie de princípio cosmológico da reencarnação.

A reencarnação consiste basicamente na união do princípio anímico, que é imortal, com as formas perecíveis, mortais, da natureza. Então, quando os mortais surgem no mundo, é porque estão animados pelos imortais, que ressurgirão em sua plenitude após o processo de perecimento dos mortais.

Assim, entendemos que os opostos não se anulam, mas se complementam para a manifestação da vida. Se meditarmos atentamente, perceberemos que a concepção cosmológica de Heráclito leva necessariamente ao princípio da reencarnação, claro que não exposta explicitamente e em seus detalhes, mas já implicada nas premissas e nessa visão extremamente original da natureza, posto que simples.

Bibliografia

IEEF. Princípios da filosofia espírita. São Paulo: IEEF, 2012.

KARDEC, ALLAN . O livro dos Espíritos. São Paulo: Lake, 2010.

KARDEC, ALLAN. A Gênese. São Paulo: Lake, 1999.

MORENTE, M. G. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1970.

PIRES, J. HERCULANO. Introdução à filosofia espírita. São Paulo: Paidéia, 2005.

PIRES, J. HERCULANO. O sentido da vida. São Paulo: Paidéia, 2005.