“A perda de um dedo, quando se presta um serviço, apaga maior número de faltas do que o cilício suportado durante anos, sem outro objetivo que o bem de si mesmo. O mal não é reparado senão pelo bem, e a reparação não tem mérito algum se não atingir o homem no seu orgulho ou nos interesses materiais.”
O arrependimento não exclui a necessidade da expiação, ele é o início da compreensão que ilumina o indivíduo para o bem, mas o mal que ele praticou deve ser reparado, de modo que a expiação tem as suas duas faces: em sentir o que se fez sofrer e fazer o bem aquele que se fez o mal. O segundo aspecto é absoluto, pois o bem é lei universal que domina todas as coisas, de maneira que dependendo de como ele é cumprido, o primeiro aspecto pode em muito ser remediado. Nisso vemos o poder da ação humana que renova seu destino, a aparente fatalidade que lhe espera, pela continuidade de seus esforços tanto para o bem como para o mal.
A expiação sobrevém ao indivíduo mesmo que ainda não haja o arrependimento, não há uma ordem necessária, de modo que o sofrimento pode despertar uma reflexão que levará ao arrependimento. Entretanto, é muito importante que o indivíduo se arrependa, pois só assim ele reconhece o mal que o domina e tem meios de combater a causa de sua inferioridade. Assim, a expiação é um processo geral da justiça universal e só ela não basta que o indivíduo se repare, é necessário o movimento interior de conscientização em que o indivíduo se despoje do pensamento do mal que o domina. Portanto, o movimento substancial de mudança consiste no arrependimento sincero, isto é, quando há uma abertura, nos limites mentais, para as perspectivas de realização da bondade e se persegue essa realização, se afastando continuamente do mal. Assim, pode-se sofrer muito, mas nada compreender, permanecendo ressentido e magoado, pronto também para fazer sofrer.
Do que se expôs, há o seguinte desenvolvimento:
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a) expiar, de forma geral, é sofrer as consequências da má conduta, dos prejuízos causados a outrem, assim, na esfera da ação humana há a legislação da justiça divina que nada deixa impune ou sem reconhecimento – a providência divina não é causa das ações humanas, mas as reconhece sendo boas ou más, pelos efeitos que elas provocam no destino dos homens. Desse modo, a expiação é determinada pela justiça divina, é a sentença que recai sobre um modo de vida que se manifestou prejudicial ao próximo e a sociedade – nenhuma ação humana escapa da ordenação das leis universais, sua causa é livre, mas as suas consequências são presididas pela sabedoria divina.
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b) o que emerge desse problema é que o sofrimento só alcança resultados consideráveis quando desperta o verdadeiro arrependimento, ou seja, quando o indivíduo não só percebe que está fazendo o mal, mas que não quer mais praticá-lo. E dependendo do seu esforço de mudança, o caráter da expiação pode se transformar radicalmente, pois o sofrimento só está a serviço do melhoramento do Espírito, de modo que se ele consegue se melhorar pelo trabalho que emprega no seu desenvolvimento moral, já não tem a necessidade de passar por rudes sofrimentos. Pois a justiça divina também concorre para o progresso geral das criaturas e em nada se assemelha a mera e superficial ação punitiva, mas antes, pedagógica. Entretanto, a consecução desse desenvolvimento moral do Espírito inferior não significa o caminho mais fácil, e esse empreendimento não se realiza tão somente por calculo egoísta e por barganha, onde o indivíduo tenta tranquilizar sua consciência com práticas superficiais e de verniz de moralidade. O resgate das faltas cometidas só se dá mediante a prática do bem, é na luta moral, na vivência das virtudes cristãs que a reparação se efetiva. Este é o arrependimento fecundo, isto é, que gera a inteira renovação do comportamento, os atos impregnados de valor moral, os frutos da humildade e da bondade. Portanto, as práticas individuais de penitência ou de mera aparência moral caracterizam o arrependimento estéril, que não renova o comportamento e não traz beneficio algum nas relações entre os homens.
Assim, o princípio que sustenta tais afirmações é: o mal só pode ser reparado com o bem, e para que o bem seja vivido é necessário eliminar tudo o que entretém no coração o orgulho e o interesse egoísta, uma vez que são o fundamento do mal. Portanto, quem se arrepende tem por meta preponderante abafar e destruir seus interesses egoístas e seu orgulho, se esforçando por fazer uma verdadeira revolução em seu intimo, fora disso, o arrependimento é estéril, de aparência, não gera os frutos do desenvolvimento moral:
“De que serve, como justificação, restituir após a morte os bens mal adquiridos, que foram desfrutados em vida e já não lhe servem para nada? De que lhe serve a privação de alguns gozos fúteis e de algumas superficialidades, se o mal que cometeu para outro continua o mesmo? De que lhe serve, enfim, humilhar-se diante de Deus, se conserva o seu orgulho diante dos homens?”
Nisso tudo há uma radical reprovação das práticas ascéticas e dos empreendimentos salvacionistas de cunho individualista: a obra de “salvação” é obra de educação, ou seja, o esforço do indivíduo em aprender a viver o amor no seio da sociedade em que está inserido. Só isso o livra das consequências funestas do orgulho e do egoísmo, e não a prática estéril de rituais e macerações do corpo. É necessário compreendermos a profundidade deste problema, pois em sua solução repousa o efetivo progresso da Humanidade.
Referências:
Questões 999, 999-a e 1000 de O Livro dos Espíritos – VI Expiação e Arrependimento.